sábado, 27 de março de 2010

O Segredo

Célia Gil

(foto daqui)

Sinto a brisa marítima
tocar-me as faces, ao de leve,
como uma suave carícia,
uma carícia envolvente.
Escuto-lhe o seu segredo,
o mais íntimo,
aquele segredo só seu.
Sou a pessoa mais feliz à face da terra
sou a eleita nesta partilha íntima.
E o segredo repete-se nos meus ouvidos,
como eco que me embala
nas minhas ilusões.
Deito-me na areia ainda quente do sol,
e dormito nos meus sonhos,
aspirando a brisa
para a prender em mim
e levá-la comigo onde quer que vá.
Sorrio neste estado de semi-consciência,
Sinto-me a transbordar de tranquilidade,
Alheio-me de todos os ruídos humanos,
Quero esta tranquilidade só para mim.
Envolvo-me num abraço forte
e, nesse momento, sou só eu,
o mar, a brisa, o aroma da brisa,
… O segredo.
                                     Célia Gil

sábado, 20 de março de 2010

Fuga

Célia Gil

(imagem do Google)

Onda que vens tão de mansinho,
trazes o cheiro doce do sal,
ignorante do teu próprio destino,
desfazes-te em gesto sensual.
Abraça-me com esse teu carinho,
protege-me da crueldade do mundo,
enlaça-me assim...devagarinho
e adormece-me num sono profundo.
Depois, deixa-me dormir no teu leito,
esquecer aquele ser imundo
que um dia sonhou ser perfeito.
Abraça-me assim...para sempre,
cristaliza-me no teu sal,
para que permaneça eternamente
como o teu herói imortal.
Se te cansares de me embalar,
serve-me aos peixes em bela refeição
para que ao menos estes possam festejar
aquele que ansiou a perfeição.
                                         Célia Gil

Viagem

Célia Gil
(foto daqui)



     O táxi vagabundeia rasgando serras, pinhais e mato. As curvas da estrada transpõem-me para um carrossel que não pára. Horas e horas intermináveis, que me dão a ideia de estar a percorrer vários países, todos iguais, todos monótonos. A paisagem não me desperta qualquer sentimento, porque eu não pertencia ali e sentia-me contrariada, a fugir cada vez mais de mim, do meu ser, da minha essência. O pensamento vogava triste em tudo o que deixara, a minha casa, os meus amigos, os cheiros das ruas, das frutas e das pessoas, o meu fiel e amigo Janota – um cão rafeiro que fazia parte da família – e, sobretudo, o meu pai, que não sabia se voltaria a ver, perdido nos tiros de uma guerra sem qualquer sentido na minha mente de cinco anos.
     O avião era, nessa altura, visto por todos como um passaporte para a salvação. A fuga, a vida, a escolha certa. Porém, para mim, era a fuga de mim, a fuga de tudo o que gostava, de tudo o que era. Do avião, resta-me a paisagem que observei aquando da partida, o descolar do meu território. Não sabia o que me esperava, para onde ia, quem encontraria… Mas a minha vida, tão simples até então, estava prestes a mudar.
     De volta ao táxi, recordo as vozes de tias mais velhas, mas nem sei ao certo o que diziam. Apesar de tudo, elas estavam felizes, algo que eu não conseguia compreender. Era o regresso à pátria, segundo diziam, com orgulho. A minha mãe era tomada por sentimentos opostos. Por um lado, o regresso às origens, a fuga à guerra e a protecção da cria. Por outro, invadia-lhe os olhos uma grande tristeza por ter deixado o meu pai, a sua cara-metade, numa guerra ingrata e tudo o que tinha construído até então, com esforço confiante.
A chegada a casa foi, por mim, encarada como o fim do suplício de uma viagem infindável. Mas foi efémera essa sensação de alívio.
     Depois de enfiar a chave na porta, quando esta se abriu com dificuldade, veio-me um cheiro a velho, a madeira apodrecida pelo tempo. Subimos as escadas com cuidado, até uma divisão onde foi preciso andar pé ante pé, dado que as tábuas rangiam, queixando-se dos anos ao abandono a que foram submetidas. Podíamos, na pior das hipóteses, desabar na sala, por sua vez na loja… Não queria olhar, fechava os olhos com toda a força das minhas mãos, observando, no entanto, por entre as frestas dos meus dedos magros. As paredes velhas, as teias de aranha, as tábuas cheias de humidade, o cheiro a velho, os ratos, eram agora a minha realidade, à qual só queria fugir. Não estava, de todo, habitável. E uma questão invadiu a minha mente, atormentando-me, fazendo-me encolher na minha insignificância. Rapidamente me sentei no vão de uma escada, e, abraçando as pernas, pressionando-as com força de encontro a mim, transportei-me em pensamentos à casa que não chegou a ser. Nos olhos lágrimas por transbordar, pois não queria desanimar ainda mais a minha mãe. Por dentro, a alma afogava-se nas lágrimas que não brotavam.
     Deixara uma casa nova, a cheirar a madeiras novas, com um lindo jardim no exterior. Não chegou, no entanto, a ser habitada. Nunca viria a ser a minha casa, já que tínhamos sido obrigados a partir antes de a chegarmos a habitar. E, agora, a nossa casa, o lar de que as tias falavam, era uma velha casa inabitável. Se já me sentia despojada da minha terra, do meu pai, do Janota, dos meus amigos, pior me senti ao perceber que não tinha onde ficar, a não ser aquela velha casa enegrecida pelo tempo, corroída pela humidade, em que tudo cheirava a mofo.
                                                                                                       Célia Gil

Recordações

Célia Gil

(imagem do Google)

     Tacteio com dedos trémulos, com esta cegueira interior e remexo num emaranhado de chaves que abrem as minhas recordações.
     Às vezes, sento-me ao lado delas, e, como amigas sérias de longa data, vemos passar a vida mesmo à nossa frente. Nada fazemos, ambas prostradas no caminho que não seguimos, nas experiências que não vivemos, nas emoções que não sentimos. Mas partilhamos, como amigas sérias, sem demonstrarmos o que sentimos, porque não o necessitamos, ambas sabemos que o sentimos sem que haja necessidade de palavras, de troca de olhares, porque a nossa cumplicidade reside nas imagens que partilhamos, sem que haja necessidade de comentar, sem que nos consigamos apoiar, convictas de que fazemos parte uma da outra, como amigas sérias que somos.
     Outras vezes, sento-me à tua frente, igualmente prostrada, mas só, na mesma passividade. Vejo-te desfiar lembranças como contas de um rosário, e observo, comprazendo-me ou desfazendo-me em dolorosas lembranças. De mãos trémulas, olhos desfocados por uma névoa de saudade que dói. Vejo-vos, lembranças do que fui, fluir para longe, tão longe que só vos alcanço com o poder da mente. Vejo-vos fugirem-me por entre os olhos, desvanecerem-se e quase se apagarem. E fujo, fujo sem olhar para trás.
Em certas ocasiões, em que me sinto quase independente delas, limito-me a ignorá-las, deixando-as no meio da calçada de lugar nenhum. Sigo, ultrapasso-as, perante o seu espanto, e prossigo. Mas, aos poucos, desconheço-me, perco o que fui, vagueio no que sou e sinto que deixei parte de mim nessa calçada em que vos abandonei para sempre.
Recordações,
     Não me deixem vaguear perdida e sozinha. Peguem-me na mão e caminhem comigo, estrada afora. Ajudem-me a reconhecer sempre as chaves de cada uma de vós. Sois o único elo que me prende ao que já não sou, ao que não voltarei a ser e ao que não voltarei a ter, mas preciso de vós para continuar a viver e a ver, com lucidez, o caminho a seguir rumo ao futuro…
                                                                                                                    Célia Gil

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